Delação Premiada

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Nos últimos anos, um processo investigativo da Polícia Federal em conjunto com o MPF (Ministério Público Federal), conhecido como “Operação Lava Jato”, transformou uma série de expressões e termos legais em palavras comuns para todos os cidadãos brasileiros que acompanham os noticiários.

Uma dessas expressões é a chamada delação premiada, que é uma corruptela do termo legal colaboração premiada. Isso porque, do nosso ponto de vista, as colaborações dos acusados sempre envolvem a delação de outras pessoas, mas, na prática jurídica, a colaboração não precisa necessariamente envolver denúncias de outros indivíduos.

delação premiada

Ao contrário, a colaboração pode, por exemplo, simplesmente ajudar a autoridade policial a entender o funcionamento de um determinado esquema criminoso, os locais em que ocorre, a forma como o dinheiro é distribuído ou “lavado”, entre outras possibilidades.

Mas, o que é delação premiada?

Como ocorre em todas as áreas da atividade humana, a prática jurídica também se altera com o tempo, assim, a história da delação premiada também é fruto de mudanças legislativas decorrentes de contextos específicos. No entanto, o uso corriqueiro contemporâneo deste instrumento legal começou nos Estados Unidos, durante a década de 1960, como forma de combater a máfia italiana.

O conceito de delação premiada não surgiu naquele momento, mas foi ali que ganhou relevância, na medida em que se demonstrou eficaz como contramedida a omertà – como é chamado o código de silêncio seguido pelos mafiosos da época. Ou seja, a justiça americana se via às voltas com o seguinte dilema: prender os mafiosos não era suficiente porque, além de poderem ser substituídos, eles jamais entregavam seus comparsas.

A ameaça da prisão era muito menor que a ameaça que a própria organização mafiosa representava, como ter sua família assassinada, por exemplo. Por outro lado, o silêncio era recompensado pela máfia, garantindo o sustento da família enquanto durasse a pena do condenado.

A colaboração premiada, tal como instituída nos Estados Unidos, visava justamente oferecer ao criminoso algumas vantagens caso resolvesse auxiliar a autoridade policial. Isso nos dá uma definição, em linhas gerais, do espírito da lei de colaboração. Mas, há muitas diferenças entre as formas de funcionamento deste instrumento de país para país.

Delação premiada na legislação brasileira

Um primeiro ponto interessante, que separa a aplicação da colaboração nos Estados Unidos e no Brasil, está no próprio nome. O que aqui chamamos colaboração premiada, lá é chamado plea bargain, ou, em tradução livre, pedido (proposta) de barganha (negociação).

No nosso caso, o juiz pode oferecer ao acusado um prêmio por sua colaboração. Nos Estados Unidos, o promotor abre uma negociação, caso entenda que possa ser útil para as investigações. Sem entrar em muitos detalhes, digamos que há uma grande diferença entre oferecer uma condição privilegiada em troca de algo, e oferecer uma possibilidade de negociação.

No primeiro caso, você está oferecendo uma recompensa antes da apresentação da contrapartida. No segundo, você está apenas oferecendo uma possibilidade de negociar. A diferença é sutil, mas pode ter implicações práticas significativas. De todo modo, também parecem haver limites muito mais claros do que pode ser oferecido ao acusado americano. Mas, nosso objetivo é entender o instrumento legal como está sendo utilizado no Brasil.

Delação premiada: lei 12.850 de 2013

A colaboração de um acusado na investigação e no processo legal foi sendo implementada aos poucos na legislação brasileira. A primeira previsão deste instrumento foi aprovada em 1990, na lei de crimes hediondos – basicamente: tortura, tráfico e terrorismo. O princípio ali definido era o de que a confissão deveria levar ao desmantelamento da organização criminosa e, em troca, a pena poderia ser reduzida de um a dois terços.

Em termos simples, uma sentença hipotética de 15 anos poderia ser reduzida para 10 ou 5 anos, dependendo de como o juízo entendesse a utilidade efetiva da colaboração.

Deste momento em diante, a previsão passou a constar, ainda naquele mesmo ano, para os crimes de sequestro e contra a ordem tributária e econômica. Em 1995, era incluída na lei do crime organizado e, em 1998, da lei de lavagem de dinheiro. Neste último caso, porém, foi introduzida uma novidade.

O colaborador continuava podendo ter sua pena reduzida, mas a pena também poderia: “[…] ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, […]” Ou seja, abria-se uma gama maior de “premiações”, incluindo deixar de aplicar a pena.

Pouco depois, tivemos a lei de proteção as vítimas e testemunhas, em 1999 e, ainda, alterações na lei de drogas, regulamentando a colaboração em crimes relacionados ao tráfico e comercialização de entorpecentes, já em 2006.

Todo este caminho nos leva até o ano de 2013, quando finalmente foi regulamentada uma nova lei do crime organizado. Ou seja, de forma abrangente, uma lei que encaixava o instrumento da colaboração em todos os casos em que o réu estava envolvido com algum tipo de organização criminosa. Vamos detalhar seus pontos principais.

Delação premiada: artigo 4o

Dos quatro artigos da lei, este é que define o que se espera do réu e, também, o que se pode oferecer em troca. Com relação ao “prêmio”, a pena pode ser reduzida em até 2/3 (dois terços), pode ser comutada por regime semiaberto, aberto, restrição de direitos ou, simplesmente, perdoada, a critério do juiz encarregado. Para tanto, a lei determina que o réu cumpra pelo menos um dos seguintes itens:

  1. Identificar os membros da organização criminosa e os crimes cometidos.
  2. Revelar a estrutura hierárquica e o funcionamento da organização criminosa.
  3. Auxiliar na prevenção de novos crimes decorrentes das atividades da organização criminosa.
  4. Auxiliar na recuperação do produto dos crimes praticados pela organização criminosa.
  5. Apontar a localização de vítima com a sua integridade física preservada (casos de sequestro).

Para usar a delação premiada na Lava Jato como exemplo, em geral, os colaboradores costumam enquadrar suas contribuições nos itens 1, 2 e 4. Mas a lei faz uma ressalva muito importante, a de que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.”

Em outras palavras, pelo menos em princípio, a palavra do colaborador não serve como prova para condenação. Todos os denunciados por ele somente poderão ser condenados caso sejam encontradas provas que corroborem a delação. Este é um dos pontos que têm sido criticados na atuação da força tarefa da Lava Jato por alguns juristas.

De qualquer forma, também há outras diferenças nos procedimentos de colaboração que provocam muitas discussões no meio jurídico.

Delação premiada da Odebrecht

Uma das prisões preventivas mais impactantes da Lava Jato foi a de Marcelo Odebrecht, dono da empreiteira de mesmo nome, uma empresa com atuação em vários países. Neste modelo, o empresário foi preso em meados de 2015 e permanece encarcerado até o presente momento, mesmo tendo negociado sua colaboração.

Todos os principais executivos da empresa fizeram parte de um outro tipo de acordo, chamado de leniência, em que a empresa se compromete a indenizar o Estado, na forma de multa. Em troca, recebe autorização para continuar, dentro do possível, com suas atividades. Mas, é notório que a empresa acabou abandonando alguns contratos já em andamento.

No fim, a delação premiada de Marcelo Odebrecht resultou em pouca ou nenhuma redução de sua pena e sua empresa permanece às voltas com uma grande incerteza em relação ao seu futuro.

Delação premiada da JBS

A JBS, popularmente conhecida como Friboi, percorreu um caminho muito diferente da Odebrecht até a sua colaboração. Em primeiro lugar, nenhum de seus executivos chegou a ser preso. A empresa e seus donos sequer passaram pela força tarefa de Curitiba, tratando diretamente com o Ministério Público Federal em Brasília e a Procuradoria Geral da República.

Seu acordo incluiu o perdão a todos os executivos envolvidos, desde que mantenham sua parte, colaborando em todas as fases futuras das investigações e consequentes processos legais.

A empresa também parece ter sido menos afetada pelos escândalos, principalmente quando comparada às demais envolvidas em esquemas de corrupção. Muito provavelmente porque sua delação parece ter sido mais uma iniciativa planejada pelos próprios empresários do que uma consequência das pressões que outros réus sofreram ao serem presos preventivamente.

Por outro lado, os empresários da JBS também ofereceram algo incomum nas delações anteriores: provas materiais independentes. Ou seja, sua colaboração foi além da mera denúncia por depoimento. Ofereceram gravações de alguns dos denunciados e, também, auxiliaram a Polícia Federal a colher provas de crimes que ainda estavam em andamento.

De qualquer forma, é necessário notar que o instrumento da delação premiada, tal como está sendo utilizado pela lei de 2013, é muito recente e ainda não passou pelo crivo de vários julgamentos, ao longo de anos em tribunais superiores. O que significa que é possível, até mesmo provável que, ao chegar ao STF, todos estes processos e colaborações passem por inúmeras revisões.

Com o tempo, novas jurisprudências irão se estabelecer. Se tudo correr bem, em poucas décadas teremos um instrumento legal útil e decantado pela prática jurídica de anos. Se tudo der errado, em algum momento dos próximos anos poderemos ver todas estas condenações atuais serem anuladas e, talvez, até mesmo o instrumento da colaboração venha a ser revogado. Nos resta aguardar.