Democracia Líquida

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Vamos raciocinar um pouco. Quais as principais características comuns a todos os líquidos? Eles são adaptáveis a qualquer formato de recipiente e como os demais estados da matéria, tem pontos de temperatura e pressão específicos, nos quais se transformam em sólidos ou gasosos.

E o que isso tem a ver com a Democracia Líquida? Esta seria um sistema democrático com comportamento similar ao dos líquidos, já que estamos tratando de uma metáfora. Ou seja, um sistema adaptável às necessidades, de acordo com o recipiente por assim dizer.

o que é democracia líquida

Em outras palavras, precisaríamos nos livrar de tudo que aprendemos sobre a democracia tradicional, construída ao longo dos últimos séculos, repensando toda a estrutura da atual democracia representativa, passando para um sistema “delegativo”.

Portanto, o conceito de democracia líquida envolve uma troca de significados do poder. Em princípio, para uso comum, representante e delegado, podem ser sinônimos, mas, neste contexto político, um representante é eleito para um cargo genérico, com amplos poderes e duração determinada.

Um delegado, embora também possa ser eleito, tem objetivos e limitações muito diferentes. Como sempre, estas questões são mais facilmente compreendidas através de exemplos, sendo assim, já que o sistema ainda não existe, vamos imaginar um juntos.

O que é democracia líquida

Talvez a primeira e maior dificuldade para compreender a ideia esteja relacionada com o nome, então, vamos começar trocando a pergunta para: o que é democracia delegativa? Assim, podemos associar imediatamente com a ideia de delegados com funções limitadas.

Imagine que sua cidade tem algum problema sério. Digamos, falta de água por causa de uma estiagem prolongada, como eventualmente acontece no nordeste brasileiro. Da forma como nossos processos políticos ocorrem hoje, a solução do problema passa, necessariamente, pela boa vontade dos governantes eleitos.

Em outras palavras, se o chefe do executivo não fizer nada, simplesmente o problema continuará. Em um sistema delegativo, os cidadãos têm o direito e o dever de participar mais ativamente do processo de decisão, podendo indicar (eleger) delegados para resolver o problema.

Estamos obviamente simplificando, mas, basicamente, um grupo de pessoas seriam investidas de um poder temporário, com um objetivo limitado, de resolver aquele problema específico. Por exemplo, construir um canal para transportar água do rio São Francisco – como efetivamente está ocorrendo no mesmo nordeste.

Este grupo se reuniria com técnicos da área, estudaria o problema, analisaria os fundos necessários e disponíveis e recomendaria uma solução. Como seria um grupo pequeno de pessoas, mas, principalmente, delegado apenas para este fim, todo o processo seria mais rápido, idealmente, do que a burocracia estatal atual.

Uma vez estabelecido um plano, com os devidos projetos e orçamentos, os cidadãos debateriam e votariam pela sua execução ou por eventuais alterações. Novamente, há algumas simplificações, mas o objetivo é fixar a ideia geral de como funcionaria a democracia líquida, ou delegativa. Agora, vamos aprofundar um pouco o entendimento.

“Liquecracia”: algumas vantagens comparativas

Sim, temos mais um nome diferente para a mesma proposta: liquecracia. Importante por retomar a metáfora dos líquidos. Principalmente porque este ponto talvez não esteja totalmente claro, afinal, onde está a maleabilidade do sistema?

A proposta genérica da democracia delegativa, como conceito aplicável à nossa realidade, envolve alguns detalhes que esclarecem esta maleabilidade, na comparação com o sistema representativo. Seriam os seguintes:

  1. Duração dos termos (mandatos). Eleitos para um cargo mais genérico, ou para uma função mais específica, todos os delegados apontados por um determinado grupo da população podem ter um prazo determinado. Mas, também podem não ter. Assim como é possível a cada cidadão retirar seu apoio a este ou aquele delegado ou representante e atuar diretamente sobre um questão em certas circunstâncias.

Imagine a quantidade de cidadãos em uma cidade. Não é possível todos estarem presentes a todos os debates. Por isso, continuariam existindo representantes tradicionais – como os políticos atuais, porém, seus mandatos não seriam necessariamente fixos.

Além disso, como já dito, qualquer cidadão poderia retirar seu voto de apoio naquele representante a qualquer momento e passar a representar a si mesmo. Daí a fluidez do sistema e, naturalmente, sua comparação com os líquidos.

  1. Participação direta. Neste último caso, estamos pressupondo que os cidadãos não têm tempo, nem disposição, para participar de todas as discussões possíveis. Em alguns casos, elegerão representantes, em conjunto com um grupo de outros cidadãos. Em outros, delegarão a solução de problemas, novamente em conjunto com outros cidadãos.

Mas, também participarão diretamente de outras questões. Provavelmente, aquelas mais relacionadas às suas áreas de interesse. Seja por preocupação social, experiência técnica ou mera curiosidade. Não importa o motivo individual, esta distribuição permitiria que o sistema fosse maleável.

  1. Desobediência como opção. Hoje, não importando o quão absurda possa ser uma decisão política, ela tem o poder de se impor, seja por lei, seja pelo uso da força. Obviamente, isso contraria o princípio básico da maleabilidade do sistema delegativo.

Neste novo modelo, por instrumentos que podem ainda ser criados, ou através de alguns já existentes, como os referendos populares, seria possível reverter decisões que não estejam de acordo com o desejo dos cidadãos.

Além disso, caberia ao indivíduo o direito a não observância de determinações que considere injustas. Algo muito próximo ao não reconhecimento da autoridade, mesmo porque, neste caso, se há autoridade, ela é meramente transitória, podendo ser encerrada a qualquer momento.

Como se vê, são concepções inteiramente diferentes do sistema atual. Difíceis mesmo de imaginar na prática cotidiana. Mas, como todas as propostas extremas, muito desviantes da nossa realidade e, até mesmo, da nossa imaginação, seu início se dá por experimentos em realidades confinadas.

Em outras palavras, encontra-se um recipiente de teste para verificar se um determinado líquido pode ser acomodado nele. Vamos ver um exemplo de organização política muito recente, que procura estabelecer práticas relacionadas a uma democracia líquida.

Partido Pirata: a troca livre de arquivos, informações e poderes

Como o leitor já deve estar percebendo, a própria ideia de democracia líquida tem muito a ver com os tempos atuais, com a percepção da sociedade como múltipla, diversa culturalmente e, portanto, não enquadrável em um molde único padronizado.

Neste contexto, existem correntes de pensamento alternativas que ainda não podemos saber quais frutos darão no futuro próximo. Uma delas é o Partido Pirata. Um movimento que começou na internet, lutando pela livre circulação de arquivos e informações e, hoje, se transformou em um partido formal em vários países.

Uma das inovações destes vários partidos Pirata é a utilização de uma plataforma, desenvolvida como software livre, para discussão de seus processos decisórios internos: a LiquidFeedBack. Basicamente, uma rede social de caráter político, para a distribuição relativamente igualitária do poder, no interior da estrutura partidária.

Em outras palavras, uma experiência prática de democracia líquida, limitada espacialmente em um partido, mas que pode comprovar sua eficácia com o tempo. Isso porque, no momento atual, várias outras iniciativas, com nomes diferentes, espalhadas pela internet, adotam princípios semelhantes.

Em futuro breve, estes esforços podem convergir em uma nova geração de seres humanos, já acostumados ao princípio líquido de um novo tipo de sociedade democrática. Pense no crowdfunding, uma forma de financiamento coletivo.

Se tentássemos explicar o funcionamento do sistema aos nossos avós, pode ser que não conseguissem entender, mas, dizendo que é algo como uma “vaquinha” online, onde cada um apoia o projeto que bem entende, assim como cada um, lança o projeto que bem entende. Bom ou ruim, cabe à comunidade julgar, apoiando ou abandonando o projeto.

Iniciativas como estas se encaixam neste novo tipo de sociedade, que ainda não conseguimos enxergar totalmente, mas que está presentemente se desenvolvendo, mesmo que não saibamos qual será sua forma final, porque seu conteúdo é líquido. O que nos leva à parte conceitual mais profunda, da qual quisemos poupar o leitor até agora.

A modernidade líquida: a transformação da percepção da realidade

Embora não trate diretamente de uma proposta de democracia líquida, Zygmunt Bauman é o pai da expressão modernidade líquida e, consequentemente, do entendimento base, através do qual a sociedade de relações fluídas, pode dar origem a um novo tipo de democracia.

A discussão que o sociólogo propõe se inicia com a mesma metáfora com a qual iniciamos este texto. Porém, de forma muito mais elegante. Como se trata de algo fundamental para entender o mundo contemporâneo, é uma leitura mais do que recomendada. Por sorte, a editora brasileira do livro de Bauman disponibiliza o prefácio livremente. É curto e está nos links abaixo.

Para encerrar, precisamos de uma visão aprofundada e crítica do modelo representativo atual, mas, principalmente, que contenha uma proposta inicial de democracia delegativa, o que temos em Guillermo O’donnell.

Novamente, por se tratar de uma percepção recente, é uma proposta em constante construção. No texto sugerido, O’donell trata mais dos problemas do sistema representativo e burocrático atual que da proposta delegativa, mas é bastante adequado para entender a origem da proposta em profundidade. Além de completar o quadro geral que simplificamos nas linhas anteriores.

Se o leitor tiver a disponibilidade e a vontade, possivelmente passe a enxergar a ideia como menos distante da realidade do que parece à primeira vista. Porque, de fato, para quem está acostumado com uma vida inteira inserida em modelos hierárquicos incontestáveis, a proposta parece pura utopia.