Estatuto do Desarmamento

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Antes de começarmos a falar sobre o Estatuto do Desarmamento, é necessário discutir brevemente a própria noção de violência e, principalmente, um dos fundamentos dos Estados modernos: o monopólio da violência, um estágio que, como todos devemos saber, ainda não foi conquistado integralmente.

Como são duas discussões diferentes, comecemos pela violência em si. Neste campo, não importa a opinião de cada um de nós, mas sim o que os dados científicos apontam. O mundo nunca foi tão pacífico como é hoje e, além disso, todas as curvas de tendência apontam para um futuro cada vez menos violento.

É claro que se trata de uma previsão baseada no histórico mundial recente, do pós-Segunda Guerra, porque não há dados confiáveis antes disso. Mesmo assim, muitos de nós temos a certeza, baseados no que vemos no dia a dia, que a violência está sempre aumentando.

o que é estatuto do desarmamento

Se os dados estão corretos (e estão), mas as pessoas continuam vendo sempre mais violência onde há cada vez menos, o que justifica essa discrepância? A resposta é muito mais simples do que se pode imaginar. Como a sociedade está em constante evolução, cada passo dado rumo a um mundo mais justo e pacífico cria dois efeitos.

Primeiro, as pessoas se acostumam às melhorias nas condições de vida, depois querem mais. O que, aliás, é perfeitamente natural. Em outras palavras, quanto menos violência ocorre no mundo, mais intolerantes nos tornamos a ela. Daí decorre que passemos a prestar maior atenção aos eventos do tipo.

Além disso, dizer que o mundo está mais pacífico não significa dizer que todos os países estão. Quando olhamos o todo, a evolução é clara. Porém, quando olhamos países em guerra civil, ou menos desenvolvidos de forma geral, ainda podemos perceber níveis relativamente altos para as taxas de homicídios, por exemplo.

Como há um aumento geral da consciência coletiva de que isto é um mal que pode e deve ser combatido, surgem iniciativas as mais diversas neste sentido. É isso que explica por que o estatuto do desarmamento foi criado. Com base em dados científicos e pensando no anseio da população, por maior segurança.

Da teoria à prática: as determinações do estatuto do desarmamento

No Brasil, os dados mostram que o número total de homicídios saltou de um pico de 50 mil em 2003, para 60 mil em 2014. No entanto, como a taxa de crescimento populacional foi maior do que isso, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes permaneceu relativamente estável na comparação direta entre estes dois pontos.

Em outras palavras, estatisticamente, não houve avanços nem retrocessos. O país segue relativamente estagnado em torno de 30 ocorrências anuais para cada grupo de 100 mil brasileiros. Mas, por si só, este dado indica que o estatuto do desarmamento não atingiu seu propósito?

Não exatamente. Se desmembrarmos estes dados genéricos, veremos que o problema brasileiro está diretamente relacionado aos confrontos entre polícia e crime organizado, com inúmeras vítimas civis pegas neste fogo cruzado.

O que o estatuto fez foi dificultar a posse de armas por parte da população civil e, é claro, todos estamos livres para ter opinião a respeito, mas, como o leitor mais paciente poderá comprovar por si mesmo, um cidadão armado tem maior chance de morrer em confronto do que teria se não estivesse portando arma.

De qualquer forma, os resultados do estatuto do desarmamento são discutíveis. Nem tanto pelo teor da lei, mas, principalmente, porque jamais pretendeu atacar o problema real do país. Simplesmente procurou aumentar a abrangência do já citado monopólio da violência nas mãos do Estado e aí está o problema de fato.

Juntos, crime organizado e Estado matam indiscriminadamente. Tanto que o resultado crescentemente negativo da “guerra” entre ambos, tratou de obscurecer todos os avanços que se poderia esperar do desarmamento da população civil.

Ou seja, para cada jovem embriagado e armado, que deixou de morrer ou de matar em função do estatuto de controle de armas de fogo, um outro, pelo menos, morreu nas mãos do aparato policial ou do crime organizado. Por outro lado, a discussão política não se baseia estritamente em dados, mas em paixões.

Desarmamento contra e a favor: apenas mais um debate polarizado?

Certamente, o estatuto do desarmamento (lei 10826) não é um instrumento perfeito e não há dúvida de que poderia ser melhorado. Mas, o que sempre precisa ser lembrado é que não é à toa que existe uma bancada no congresso chamada pejorativamente de “bancada da bala”, ou seja, deputados financiados pela indústria de armamentos.

Para estes congressistas, a questão não é ideológica, ainda que afirmem isso publicamente. Para eles, é apenas um negócio, como qualquer outro. O estatuto atrapalha os rendimentos de seus financiadores e, portanto, deve ser derrubado. Mas, sem generalizar, ainda há congressistas que, por puro desconhecimento dos estudos mais recentes, seguem a linha ideológica.

A junção destes dois perfis, na bancada da bala, mais a percepção geral e pouco informada acerca do assunto, fez com que se discutisse seriamente a revogação do estatuto das armas, em 2016, quando houve uma flexibilização das normas.

Agora, fala-se novamente de revogação do estatuto das armas, em 2017. A proposta partiu de um conjunto de pouco mais de 20 mil pessoas através do portal e-cidadania do Governo Federal. Este número é muito pequeno para sustentar um projeto de lei, mas está sendo analisado como sugestão legislativa pela Comissão de Direitos Humanos no congresso.

Segundo o portal do Senado: “O autor da sugestão legislativa argumenta que o problema da violência não foi resolvido e que a revogação do Estatuto do Desarmamento devolveria aos cidadãos o direito de se defender.” O que resume a essência da discussão sobre o monopólio da violência.

Afinal, é compreensível que o cidadão que se sente desprotegido pelo aparato estatal queira buscar formas de se defender e, em termos meramente legais, permitir ou não a posse de armas pela população civil, é uma questão de escolha da sociedade. Mesmo que toda a ciência diga que a ideia é ruim, se assim decidido, assim será.

Mas, afinal, a população quer estar armada?

Talvez o leitor se recorde que, pouco após a entrada do estatuto em vigor, foi realizado um plebiscito, em 2005, sobre a proibição definitiva de venda de armas de fogo, e nele, pouco mais de 63% dos votantes, foram contrários à proibição.

Para explicar melhor, a situação era a seguinte: o estatuto fora aprovado como lei em 2003, mas como se tratava de projeto polêmico, passou por algumas audiências públicas e consultas prévias de opinião. Como houve muitos questionamentos, apesar de aprovado o projeto, seu artigo mais radical ficou condicionado a referendo popular.

Portanto, acabamos com uma lei que endurecia as regras de acesso, mas no fundo não proibia a compra. Em outras palavras, não adotamos nem o modelo americano, de comércio praticamente livre, nem o britânico, de proibição total. Ou seja, não nos decidimos como sociedade.

Ao contrário, optamos por continuar discutindo a questão indefinidamente, pelo menos, por enquanto. Novamente, não nos custa ressaltar que meias medidas resultam em meias soluções. Independente do lado que o leitor se posicione nesta discussão, o mais importante é decidirmos que tipo de sociedade queremos ser.

Como não é possível separar o país em dois para cada questão atualmente polarizada, até porque acabaríamos com algumas centenas de países e não apenas dois, qualquer que seja o lado vencido, terá de aprender a conviver com a decisão tomada.

Os dados científicos demonstram que sociedades que proíbem a comercialização e posse de armas de fogo têm números menores de homicídios e não há muito que discutir sobre isso, mas, por outro lado, os Estados Unidos têm taxas muito menores que as brasileiras. O que isso significa?

O cerne da discussão: o ponto que falta perceber

Além da “guerra” entre Estado e crime organizado, o Brasil tem um problema estrutural pouco debatido. Estados que fazem com que suas instituições e leis funcionem relativamente bem conseguem conviver com cidadãos armados, como é o caso dos Estados Unidos.

Outros Estados, que também têm instituições e leis funcionando corretamente, conseguem resultados ainda melhores, como o Reino Unido desarmando totalmente a população. Por outro lado, Estados que têm dificuldades em tratar a rés pública (coisa pública) com o devido cuidado, não conseguem.

Além da tradicional dificuldade brasileira de fazer cumprir as leis, ainda temos a indefinição de rumo, citada acima, cujo efeito mais direto é, também, o menos perceptível. Enquanto ficamos discutindo se os cidadãos devem ou não estar armados, discutimos pouco como o Estado controlaria, tanto uma situação, quanto a outra.

Porque, mesmo nos Estados Unidos, o fato de os cidadãos terem o direito constitucional de se armarem não significa que estejam acima do Estado ou das leis regionais e nacionais. No Brasil, esta mesma ideia não necessariamente se aplica, tanto por questões culturais, quanto pelo estágio atual de polarização.

O que falta, aparentemente, é tornar a discussão tanto mais séria e menos apaixonada, quanto mais condizente com os anseios da população, sejam quais forem. Honestamente, para quem conviveu com os dois sistemas, o permissivo e o proibitivo, a posse de armas em si mesma é um problema menor perto do que o despreparo do Estado.