Superávit Primário

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Desde que o Plano Real foi lançado, ainda no governo Itamar Franco, o Brasil vem desenvolvendo um modelo macroeconômico orientado por algumas balizas fundamentais, sendo que, atualmente, uma delas é o superavit primário.

Apesar dos comentaristas de economia costumarem fazer parecer um conceito muito profundo, é um termo cujo significado é bastante simples. Trata-se de um nome pomposo para um saldo positivo simples, mais ou menos como o que você poderia ter em sua conta corrente, ao final de um período qualquer.

o que é superávit primário

Como estamos falando de termos econômicos técnicos para resultados financeiros, a melhor maneira de explicá-los é com a matemática. Por isso, vamos primeiro construir um exemplo, para depois explicar onde os termos se encaixam.

Meu Brasil não brasileiro

Vamos imaginar um país fictício muito pequeno, do tamanho de uma pequena ilha. Isso vai facilitar o nosso exercício. O país tem uma população de menos de mil pessoas e sua economia é, basicamente, dependente da pesca e do turismo. Neste cenário, é claro, também existe um governo.

Também para facilitar o exercício, por algum motivo obscuro, este país resolveu utilizar o real como moeda e adotar exatamente a mesma legislação que o Brasil – sim, isso não faz nenhum sentido, mas é apenas um exemplo. Então, no primeiro dia, do primeiro ano, de um governante recém-eleito, a situação fiscal do país é a seguinte:

  1. O país tem um saldo disponível em conta de 10 mil reais.
  2. Também tem dívidas com o exterior que totalizam 1 milhão de reais, com juros de 10% ao ano.
  3. Arrecada 500 mil reais por ano em impostos.
  4. As despesas anuais do governo com educação, saúde, etc, são de 400 mil reais.

Faltam alguns detalhes, que incluiremos na hora apropriada, mas, por ora, já temos nossa ilha paradisíaca. Então, vamos ver como os termos se encaixam nas contas deste governo.

O que é superavit primário?

Em primeiro lugar, se existe um primário, significa que também existe um superavit secundário?

No setor público, que é o nosso tema de interesse, não. O conceito de superavit primário aqui discutido se refere unicamente às contas do governo. Neste sentido, primário significa anterior ao desconto de juros e pagamentos de dívidas. Praticamente o resultado direto de receitas menos despesas.

O nosso governo fictício, portanto, teria um superavit primário de 100 mil reais anuais, ou seja, recebe 500 mil por ano, gasta 400, portanto, sobram 100. Simples assim. Mas, uma vez explicado como é calculado o superavit primário, o que aconteceria se a situação de invertesse?

Se fosse o contrário e nossa bela ilha recebesse apenas 400 mil anuais, enquanto gastasse 500, então, o país teria o que os economistas chamam de deficit primário. No caso, de 100 mil reais anuais. Outra conta bastante simples, mas, infelizmente, acabou a parte fácil.

O que é superavit?

O fato da nossa ilhota ter um superavit primário anual não significa que estará financeiramente saudável ao longo do tempo, porque precisamos incluir nas contas o impacto dos juros, amortizações e, também, da inflação.

Pense em suas próprias contas mensais por um instante. De nada adianta ganhar duas vezes mais do que gasta com aluguel, comida, viagens, etc., se você deve milhões, com juros altos e vencimento em curto prazo.

Ainda que o resultado primário seja positivo, no final você continuará bastante endividado, isso se já não estiver falido. Por isso, o resultado que realmente determina sua vida financeira é o final, podendo ser superavitário ou deficitário.

Os governos são um pouco mais complexos que isso. Mas o princípio básico é que o superavit primário indica a capacidade que um governo tem de pagar suas dívidas. Nossa ilha fictícia, para retomar o exemplo, tem 100 mil anuais de sobra inicial, mas seria superavitário nas contas finais?

Incluindo as dívidas na conta: resultado primário versus resultado nominal

A composição da dívida de um país é algo extremamente complexo. Boa parte do que o Brasil paga de juros e amortizações se refere a dívidas muito antigas, cuja origem é, no mínimo, duvidosa. Além disso, quando precisa se financiar, o Brasil emite títulos públicos, uma estrutura de dívida totalmente diferente da dívida externa direta, tomada junto ao FMI (Fundo Monetário Internacional), por exemplo.

Como estamos querendo facilitar o entendimento, vamos ignorar este fato por enquanto. Assim, com uma dívida de apenas 1 milhão de reais, os juros anuais sendo de 10%, o governo de nossa ilha teria de utilizar todo o superavit primário para pagar os juros e não deixar a dívida crescer.

Em outras palavras, no final, o resultado é zero. Nossa ilha vive, literalmente, para pagar suas contas básicas e juros de dívidas. Se arrecadasse um pouco mais e tivesse um superavit primário de 200 mil, por exemplo, poderia pagar os juros e ainda teria 100 mil de superavit nominal.

Caso sua arrecadação fosse a mesma do exemplo inicial, mas desta vez mudássemos o total da dívida para 2 milhões, então teríamos juros anuais de 200 mil contra um superavit primário de apenas 100 mil, o que significaria um déficit nominal de 100 mil.

Resumindo e repetindo, o resultado primário de uma economia é apenas um indicador do equilíbrio das contas básicas do governo. Mas não serve como medida final da sua saúde financeira. Além disso, há um terceiro resultado importante.

A gestão financeira operacional

Como dissemos, nossa ilha tem apenas 10 mil em caixa no primeiro dia. Em cima deste dado, vamos ver quais seriam suas necessidades reais para arcar com suas despesas ordinárias.

Se seus gastos anuais básicos são de 400 mil, teríamos um gasto mensal pouco maior que 33 mil. Como os impostos são arrecadados de formas variadas, digamos que o governo vá receber, ainda no primeiro mês, pouco mais de 10 mil em impostos referentes ao período da gestão anterior.

Neste caso, os 10 mil em conta mais os 10 que tem a receber não cobrem as operações financeiras iniciais. No mercado privado, um fluxo de caixa como este provavelmente empurraria uma empresa para o fundo do posso, mas governos têm alternativas mais amplas que o setor privado. Pelo menos, até um certo limite.

Por exemplo, o governo pode emitir títulos de curto prazo no valor total de 50 mil reais com juros de 10%. Supondo que venda rápido, passará a ter 60 mil disponíveis, mais 10 mil a receber de impostos em curtíssimo prazo, contra despesas de apenas 33 mil.

Sim, o governo criou uma nova dívida para si, mas passou a ter um superavit operacional de 37 mil naquele primeiro mês, ganhando fôlego para se manter funcionando. Do contrário, estaríamos falando de 10 mil disponíveis, outros 10 a receber e 33 a pagar. Portanto, um deficit operacional de 13 mil.

Estes cálculos também são mais complexos na vida real e costumam incluir o impacto da inflação, amortização de juros, mas como já dissemos antes, o objetivo é explicar o conceito de forma simples. Por isso, tomamos algumas liberdades didáticas.

Meu Brasil, o brasileiro: abandonando a ilha

Dando adeus à nossa ilhota, vamos dar uma olhada nos números reais da economia brasileira, utilizando os dados oficiais do Tesouro Nacional, cuja série histórica começa em 1997.

Para começar, quanto ao superavit primário, o histórico ainda é positivo apesar dos três últimos anos de desequilíbrio orçamentário. Desde o início até 2013, praticamente só houve incremento de superavit primário. Começamos com deficit primário de 2,3 bilhões de reais em 1997, mas passamos a 22,5 bilhões de superavit já em 1999 e chegamos a pouco mais de 75 bilhões em 2013.

Em 2014, foi registrado deficit primário de mais de 20 bilhões; em 2015, mais de 116 bilhões e, em 2016, quase 160 bilhões de reais. Mas, o fato de não termos superavit primário em 2016, ou nos anos imediatamente anteriores, não chega a ser surpreendente. O telejornais vivem nos lembrando disso.

Principalmente porque, dentro da lógica básica da economia, o superavit primário funciona como indicador do equilíbrio orçamentário do Estado. Por isso, vivem nos alimentando com este número. Mas, como já dissemos anteriormente, medir a saúde de uma economia apenas por este indicador é, no mínimo, uma atitude parcial, quando não mal intencionada.

O nosso Brasil, brasileiro: a arte de crescer indefinidamente suas dívidas

Se queremos falar em saúde financeira, precisamos incluir outros fatores na análise, verificar se há constante deficit ou superavit. O que é uma fórmula capaz de oferecer uma percepção mais realista dos dados. Assim, voltando aos dados oficiais do Tesouro, vamos observar os resultados nominais, ou seja, incluindo os juros da dívida.

Em 1997, começamos com deficit primário de 2,3 bilhões de reais e acrescentamos mais 19 bilhões à dívida só em juros. Ou seja, nosso deficit nominal foi de pouco mais de 21 bilhões de reais sem abater um único centavo do que devíamos. Ao leitor, que aperte os cintos, pois isso só vai piorar.

Em 1998, 5 bilhões de superavit primário, 50 bilhões de juros e, portanto, 45 bilhões de reais de deficit nominal. Captou a lógica? Vamos resumir a história dizendo que houve certo controle nos anos seguintes, mas, sempre apresentando deficit até 2003, quando tivemos um deficit nominal de 62 bilhões.

Assim seguimos, controlando alguns anos, batendo recordes em outros, até 2014, quanto apresentamos deficit nominal de mais de 270 bilhões. Muito? O deficit nominal de 2016 foi de 477 bilhões de reais enquanto o deficit primário foi de 160, ou seja, foram 317 bilhões apenas de juros nominais.

Em outras palavras, o equilíbrio entre receitas e despesas é importante, mas se o governo não resolver o problema das suas dívidas, não há superavit primário que possa nos salvar.