Fact-Checking

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Uma expressão que tem agitado há algum tempo as discussões políticas é o chamado fact-checking (em português, “checagem de fatos”). Apesar da relevância e da atenção que esse conceito vem ganhando, muitas pessoas não conhecem o conceito de fact-checking nem mesmo entendem o papel dessa atividade.

o que é fact checking

O que é fact-checking e como surgiu o fact-checking

Basicamente, como o significado de fact-checking indica, trata-se da atividade – de cunho informativo – de checar, conferir as afirmações feitas em texto, declaração ou discurso para ver o quão verdadeiras elas realmente são. O fact-checking pode acontecer antes que um texto seja dado à divulgação (por exemplo, por profissionais de um veículo de imprensa, como um jornal ou uma revista, para o qual um texto foi escrito, evitando, assim, que um texto com dados errados chegue aos leitores, cause erros, produza danos morais ou prejudique a credibilidade do veículo).

O fact-checking também pode acontecer depois que um texto é divulgado – por exemplo, jornais podem analisar o quão verdadeiras são as afirmações feitas em um discurso do presidente à nação ou as promessas de um candidato ou a defesa de uma empresa depois de um desastre ambiental. De modo geral, é esse fact-checking que vem atraindo a atenção das pessoas e causando polêmicas políticas.

Idealmente, o fact-checking pode ter um efeito salutar sobre a sociedade. Além de colaborar para que as pessoas saibam o que é verdade e o que não é, ficando mais bem informadas, ao servir como uma espécie de polícia do discurso intelectual, o fact-checking pode desestimular o uso de afirmações que possam ser desmascaradas como falsas, o que pode contribuir para a elevação do nível do debate público.

Como bem se pode imaginar, esse tipo de atuação é (como o jornalismo em geral, aliás) um imã para acusações de parcialidade, partidarismo, sectarismo, agendas ocultas, interesses financeiros inconfessáveis, etc. da parte daqueles que se consideram injustiçados ou prejudicados em suas pretensões pelos “checadores de fatos”.

Embora a checagem dos fatos afirmados em manifestações públicas não seja uma absoluta novidade – sempre foi pelo menos uma parte do desempenho das atividades normais dos veículos jornalísticos -, a maior dedicação a esse aspecto e a criação de organizações especialmente dedicadas a esse fim são relativamente recentes e conferiram maior relevância ao fact-checking.

Talvez não seja exagero dizer que a eleição presidencial americana de 2012, na qual se defrontaram o então presidente Barack Obama, do partido democrata, em busca de sua reeleição e Mitt Romney, do partido republicano, foi um marco na trajetória do fact-checking. Escrevendo para o site da revista The Atlantic, o jornalista James Bennet observou que, depois de anos sendo acusados de seguir o estilo “ele disse, ela disse”, relatando acriticamente e servilmente as declarações de todos os lados envolvidos em contendas sem estabelecer distinções entre o que é verdade e o que é engodo, os jornalistas tinham se tornado mais assertivos.

Um exemplo que ele citou foi o do prestigiado jornal americano The New York Times que, em uma história de capa, afirmou que a campanha de Romney havia mentido ao veicular propaganda dizendo que Obama havia apresentado discretamente planos para eliminar exigências feitas aos beneficiários de programas sociais do governo. A atuação dos checadores de fatos foi importante o bastante para causar uma reação pública por parte da campanha de Romney: Neil Newhouse, sócio de uma firma de pesquisas de opinião pública que trabalhava para Romney declarou à época que a campanha do republicano não seria controlada pelas manifestações dos checadores de fatos.

O método usado para o fact-checking é basicamente o de confrontar as afirmações feitas com a realidade, lançando mão dos instrumentos de investigação jornalística: entrevistas, consultas a fontes de dados públicos, etc. Como quaisquer pessoas exercendo uma função relacionada com a busca da verdade, a confiança pública, a honra alheia etc., os checadores de fatos têm regras.

Um exemplo de conjunto de regras concebido para a atividade deles é o código de princípios da Rede Internacional de Fact-Checking, do Poynter Institute for Media Studies (Instituto Poynter para Estudos de Mídia), que é adotado, por exemplo, pelo projeto de fact-checking do site noticioso português Observador. Entre os princípios promovidos por esse código, podem ser elencados o não-partidarismo, a transparência na identificação de fontes, a transparência quanto às origens do financiamento da organização e de seus projetos e uma política de correções que admita com honestidade os erros que tenham sido cometidos.

Entre os mais famosos projetos e instituições dedicados ao fact-checking estão o Snopes, uma iniciativa pioneira que se dedica à análise de boatos, lendas urbanas e assuntos relacionados especialmente com a política e à cultura estadunidense; o PolitiFact, projeto do jornal Tampa Bay Times que ganhou um Pulitzer, importante prêmio do jornalismo americano, em 2009, por seu trabalho de checagem de fatos na eleição presidencial de 2008, pleito em que se confrontaram o democrata Barack Obama e o republicano John McCain; e o FactCheck.org, um site que se define como apartidário e dedicado a diminuir a confusão e a enganação na vida política americana – trata-se de um projeto do Centro de Política Pública Annenberg da Universidade da Pensilvânia.

Fact-checking e pós-verdade

Uma pergunta importante é aquela feita por Bennet no texto listado acima: “O que acontece se a imprensa chamar de mentira uma mentira e ninguém ligar?”. Se os consumidores da informação não acreditarem nos “checadores de fatos” (e certamente essa é a esperança das personalidades – geralmente políticos, seus assessores e defensores – que os atacam) ou não ligarem para a relação entre os discursos dos políticos e a realidade, o fact-checking terá pouco efeito sobre o debate público.

Essa possibilidade ganhou contornos mais alarmantes com a surpreendente ascensão política de Donald Trump, que inicialmente parecia um candidato-piada (a ponto de Huffington Post, importante site noticioso de centro-esquerda americano ter declarado que cobriria a campanha do bilionário e ex-apresentador de reality show em sua secção de entretenimento – a posição teve que ser revertida quando ficou claro que Trump era mais do que uma moda passageira e podia ter importância decisiva na corrida eleitoral de 2016), um candidato de protesto no máximo, mas venceu todo o establishment do partido republicano e impediu o presidente Obama de fazer sua sucessora na figura da veterana política e senadora pelo estado de Nova Iorque Hillary Clinton.

A relação hostil, para dizer o mínimo, entre Trump e a verdade não pareceu prejudicá-lo eleitoralmente: embora tenha recebido menos votos que sua concorrente, o candidato republicano venceu no colégio eleitoral e tornou-se a 44ª pessoa a assumir a presidência dos Estados Unidos. No exercício da presidência, especialmente em suas constantes manifestações pela rede social Twitter, Trump continuou exagerando a verdade ou simplesmente mentindo.

Por exemplo, depois do estrago causado pelo Furacão Harvey no estado americano do Texas, Trump declarou no Twitter que, depois de ter visto em primeira mão os estragos causados pelo furacão, seu coração estava ainda mais junto ao “grande povo do Texas”.

Infelizmente, Trump, como afirmou um jornalista do jornal texano Dallas Morning News, a essa altura, não havia visto nenhum estrago em primeira mão. Sarah Huckabee Sanders, secretária de imprensa da Casa Branca, respondeu a uma pergunta de um repórter dizendo que Trump havia conversado com autoridades envolvidas nos esforços de resgate e contenção de danos, incluindo o governador do estado. Como lembrou o jornal The Washington Post, isso não é o mesmo que “ter testemunhado em primeira mão o horror & a devastação”.

Embora Trump talvez tenha levado a despreocupação com a verdade a níveis quase sem precedentes no debate público da mais importante democracia do mundo, autores como Ralph Keyes apontam que não se trata de um caso isolado. ““Bill Clinton foi um gênio da prática da mentira”, disse Keyes, que lembrou o fato de Clinton ter explorado suas supostas memórias de igrejas negras queimando em seu estado natal.

Embora atentados incendiários contra igrejas negras tenham acontecido no sul dos Estados Unidos, de onde Clinton é, seu estado, o Arkansas, nunca teve um caso desses registrado. Há quem defenda que a política – nos Estados Unidos, mas não só nesse país – mergulhou em um período de “pós-verdade”, ou seja, um estágio em que o conteúdo factual das afirmações feitas não é mais importante (embora isso seja mais conspícuo no comportamento de personalidades públicas como políticos, isso também pode estar afetando as atitudes de pessoas menos públicas – Keyes, que, a propósito, escreveu um livro sobre a pós-verdade, observa que há uma epidemia de exageros em currículos profissionais).

Em vez de ser uma expressão de fatos, os discursos teriam se tornado simplesmente expressão de sentimentos ou ênfases. Por exemplo, exagerar a atuação de imigrantes em ações criminosas ou terroristas ou exagerar os benefícios a que eles têm direito pode ser simplesmente um modo de uma figura pública mostrar que reconhece a insatisfação do público com a quantidade de imigrantes no país e os níveis anuais de imigração e um modo de sugerir cuidará do problema. Os “detalhes” dos fatos relativos aos crimes e benefícios seriam desimportantes.

O tempo dirá quão grande terá sido a influência dos checadores de fatos sobre o debate público e quão relevantes serão as acusações de parcialidade lançadas contra eles e a tendência das figuras públicas de seguir em frente com todo aplomb depois de ter contado uma lorota.

Fact-checking no Brasil

Como mencionado acima, uma das possibilidades é o fact-checking ser aplicado antes da divulgação de um texto (chamado por isso, em inglês, de ante hoc fact-checking – a expressão latina “ante hoc” significa “antes do evento em questão”, no caso, antes da divulgação do texto), provavelmente pela organização que assumirá a responsabilidade por ele.

As empresas jornalísticas costumam ter profissionais encarregados de ler o material preparado pelos jornalistas para evitar a publicação de informações equivocadas. Um dos mais conhecidos no Brasil foi o jornalista Adam Sun, nascido em Taiwan e falecido em 2008, aos 55 anos. Ele havia sido chefe da equipe de checagem da revista Veja, montou a equipe de checadores da revista Época e trabalhou na revista Piauí.

Interessantemente, ele se envolveu em uma polêmica na qual contestou o depoimento de Luís Costa Pinto, conhecido como Lula, ex-jornalista da Veja que afirmou que Sun havia localizado um erro em uma matéria da revista(na conversão da moeda brasileira da época para dólares, a reportagem teria confundido uma movimentação de mil dólares com um milhão de dólares, valor incompatível com o patrimônio e rendimentos do deputado Ibsen Pinheiro, que acabou tendo seu mandato cassado pela Câmara) e recebido uma recompensa monetária por sua vigilância, mas a revista, com as capas já prontas, teria optado por publicar a matéria errada depois de conseguir que pelo menos um senador, Benito Gama, confirmasse a informação equivocada.

Sun rebateu dizendo que Lula havia admitido comportamento antiético ao dizer que havia procurado maneiras de manter capa e matéria que sabia terem sido baseadas em dados equivocados. Além disso, Sun afirmou que as coisas não haviam se passado como Lula havia dito e que quem havia localizado um erro de dolarização (apenas em alguns documentos, que a revista então descartou, usando outro sobre os quais não pairava esse problema) foi a jornalista Maria Margarida Negro, também da equipe de checagem.

Esta profissional, não Sun, teria sido quem foi premiado pela descoberta. Em suma, longe de ter sido vítima de uma mistura de barbeiragem e má-fé, Ibsen, segundo Sun, teve o mandato cassado por não conseguir explicar a origem da grande quantidade de dinheiro que recebera.

No Brasil, além do trabalho feito por jornais e revistas para checar as informações que eles próprios reúnem para divulgação e o julgamento que fazem das manifestações de figuras públicas, relatórios de órgãos governamentais, etc., têm surgido algumas organizações dedicadas especialmente à checagem de fatos. Entre elas, pode ser citada a Agência Lupa, a primeira agência de fact-checking do Brasil, cujo objetivo expresso é aprimorar o debate público. Além disso, existe, para citar um exemplo, o Truco, projeto de fact-checking da Agência Pública, uma agência noticiosa sem fins lucrativos.

O Truco, aliás, envolveu-se em uma polêmica envolvendo fact-checking e o MBL, Movimento Brasil Livre, um movimento político de direita. Questionado pelo Truco sobre as fontes de algumas afirmações veiculadas em vídeo em que o grupo apoia um projeto de lei eliminando o regime semiaberto, o MBL respondeu que o fact-checking era um instrumento de censura usado para impedir notícias inconvenientes para o establishment de chegar aos internautas.

A resposta da Agência Pública é que o fact-checking se refere à checagem das afirmações feitas e que seu objetivo não é censurar quem quer que seja. O consenso entre juristas é que não se trata de um caso de censura, apenas de livre exercício do jornalismo investigativo e, nos casos em que os checadores decidem que a declaração analisada é mentirosa, do direito à crítica.